quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Eles dançam e fazem bonito pela cultura


Sem se abalar com preconceito, meninos mostram que o balé, além de lindo, exige força, dedicação, disciplina e coragem

ITAGUAÍ - O pequeno Arthur, de apenas nove anos, se diverte sozinho enquanto a aula não começa: gira o corpo no próprio eixo, levanta a perna direita até que o pé toque a orelha, pula para a esquerda com as pernas juntas, depois, para a direita. Há um vigor e uma impaciência nos seus olhos infantis. Do lado de fora de uma casa simples cheia de alunos, no centro de Itaguaí, no meio da tarde de um dia em novembro brinca uma criança com seu sonho: ser bailarino profissional. Arthur Gavino tem a sorte de encontrar nos pais – Marcelo Castro e Michele – seus maiores incentivadores. A família mora em Vila Margarida e vê na dança uma atividade importante, mas a homofobia que persegue tanta gente, e, em especial, bailarinos, é um assunto infelizmente inevitável.

Nada disso é importante, como enfatiza Jailson Trevysani, uma referência da dança em Itaguaí há muitos anos. “Sempre vai existir homofobia, mas a arte é superior a tudo isso”, ensina ele. Graças ao seu empenho, sete meninos estudam balé na cidade (talvez existam outros), e um já é professor. É bastante difícil, muito por causa do preconceito imbecil, que meninos se dediquem à beleza, técnica e disciplina do balé. Nada existe no balé executado por homens capaz de sustentar a ideia de que a dança clássica é coisa de “maricas”: é bastante difícil conciliar com precisão força muscular, flexibilidade e excelente condicionamento físico. Tais habilidades são mais facilmente obtidas por homens.

No balé, homens e mulheres têm rotinas, movimentos e exercícios totalmente diferentes. O homem, por exemplo, não dança na ponta dos pés, e cabe a eles levantar a bailarina muitas vezes acima da cabeça. Certos passos, pela complexidade e força envolvidas, só podem ser executados com perfeição pelos homens. Portanto, a competência do bailarino nada a tem a ver com sua sexualidade, que pode, felizmente – assim como em qualquer atividade ou profissão -, ser qualquer uma.

Para além do rótulo de “maricas”, a história conta que o balé surgiu nas cortes italianas do século XV, por volta do ano 1400. Mas as mulheres só começaram a se apresentar nos palcos mais de 200 anos depois. Com o passar dos anos, porém, a plasticidade da execução dos movimentos executados pelas mulheres passou a definir o conceito de balé. A partir disso, a participação dos homens passou a ser alvo de estereótipos que se afastavam de um ideal consensual e muitas vezes tóxico de masculinidade. Por isso, culturalmente, os meninos geralmente passam longe da atividade.

Mas Jailson Trevysani insiste e tenta garimpar talentos para que a dança não se prive da beleza do balé dos meninos. O DIA esteve com três desses talentos.

“NÓS GATOS JÁ NASCEMOS POBRES”
O fascínio de Arthur pelo balé começou há três anos, quando ele tinha apenas seis anos de idade. Por sempre acompanhar a irmã às aulas na Escola Municipal de Dança (sob a direção de Trevysani), o menino passou a se interessar a ponto da mãe perguntar “quer dançar também, Arthur?”. Foi o começo de uma saudável obsessão. O pai, Marcelo, diz que é preciso pedir para o filho parar de fazer exercícios, porque é assim que Arthur brinca em casa: fazendo extensões e movimentos do balé. Marcelo não se incomoda nem um pouco com a dedicação do filho à dança: acha a arte um valor inquestionável. “O avô materno dele era professor de dança de salão”, conta ele, orgulhoso. A mãe diz que o irmão mais velho de Arthur, Lucas, no começo ficava zoando, mas é um dos maiores apoiadores hoje em dia.

Arthur Gavino: muito talento e fascínio pelo balé com apenas nove anos de idade
Foto de Studio de Dança Jailson Trevysani

Arthur já se apresentou diversas vezes. Começou com um número de “Saltimbancos Trapalhões”, com música de Chico Buarque. Arthur era um dos felinos que dançava e cantava “Nós gatos já nascemos pobres / porém, já nascemos livres”...

Houve sim um episódio de homofobia: uma aluna da escola onde ele estuda foi inclusive advertida pela direção por ter tentado ofender Arthur. Mas ele dá de ombros ao lembrar da história. Em seguida, na ponta dos pés para se servir de água do bebedouro, a poucos minutos da aula de balé, o menino de nove anos era todo ansiedade e alegria.

É o mais novo dos alunos do Studio e há nele algo de incomum que o professor dele e Jailson apontam. “Não é muito fácil de achar por aí um menino dessa idade que faz o que ele faz”, analisa Jailson, e complementa: “Tem um talento incrível e certamente pode ser um grande bailarino”. O menino sorri, satisfeito, e, perguntado se quer ir para o Balé Bolshoi (Rússia) ou para o The Royal Ballet (Londres), fica na dúvida e diz que não gosta muito de frio. Os pais acham divertido, e Arthur, mais uma vez, rodopia.

Os palcos do sucesso aguardam por ele.

LONGE DO JIU JITSU
Com apenas 13 anos e a mania de fazer a ponta (esticar ao máximo os pés) enquanto conversa, Natã Nascimento, que mora em Estrela do Céu, tem quase 1,80m de altura. As pernas compridas e o troco atarracado dão uma boa pista do que ele já é, mesmo sem ele dizer: bailarino.

Natã Nascimento: fuga das aulas de jiu-jitsu para perseguir o sonho de ser bailarino profissional
Foto de Studio de Dança Jailson Trevysani

Quando a família morava em Bonsucesso, a mãe teve a ideia colocá-lo na aula de jiu-jitsu. Coisas da vida: no mesmo local tinha aula de balé e dois meninos participavam. Natã ficou tão encantado que começou a fazer as aulas escondido. A mãe crente que ele saía de casa para lutar, mas o menino ia dançar. A luta de verdade começou quando o professor de jiu-jitsu contou que Natã não frequentava as aulas. O jovem confessou então que enganou a mãe, e ela não gostou nada daquilo, foi contra, proibiu. Segundo ele, havia a preocupação com a opinião de parentes que moravam próximo.

Mas a proibição de nada adiantou. A história começou a melhorar quando, em 2017, Natã veio morar em Itaguaí. Em agosto deste ano, o adolescente lembrou de Jailson Trevysani, pois tinha visto uma apresentação dos seus alunos. Pediu para fazer um teste e foi aprovado. Desde então, é aluno assíduo no Studio. Como quase todos os meninos que fazem balé, sempre há episódios de homofobia, mas nada que o demovesse do sonho de dançar. Em pouco tempo, já participou de apresentações com o grupo. Seu sonho de ser bailarino parece mesmo inabalável. Do alto dos seus quase 1,80m todos os palcos do mundo são visíveis.

FOTO NO MURAL DA ESCOLA
Philipe Matheus Farias tem apenas 24 anos, mas já ensina meninos e meninas no Studio de Dança Jailson Trevysani. O professor começou a ter aulas com Jailson aos oito anos, idade que tinha quando dançou “Toxic”, de Britney Spears, pela primeira vez para uma plateia. Hoje, esguio, com aquela postura inconfundível dos bailarinos (todos eles andam eretos, com os ombros para trás, em uma elegância imediata), não tem nenhum receio de gritar (gritar mesmo) com alunos e alunas na sua aula em busca do movimento perfeito. Quem nunca viu, saiba: grita-se muito. Mas, com a reportagem, o jovem professor é tímido e olha mais para o chão do que para o repórter.

Matheus, o professor: com apenas 24 anos, já é multiplicador da disciplina exigida pelos rigores do balé clássico
Foto de Studio de Dança jailson Trevysani

A família não gostou da ideia do menino moreno e magro rodopiar nos palcos: “meu pai queria que eu fizesse luta”, conta Matheus. Ainda bem que não fez, porque em pouco tempo partiu para uma sólida formação que começou em Campo Grande, na zona oeste da capital, no Centro de Artes e Dança. “Nunca tive vergonha do balé”, diz ele.

Na Colégio Teotônio Vilela, tentaram ridicularizá-lo ao colocarem no mural uma foto dele no palco, dançando, para que todos vissem que ele era bailarino. Não funcionou. “A diretora até me chamou depois para me apresentar lá”, contou, com um sorriso de triunfo. Sim, o jovem professor triunfou e é premiado: já obteve a terceira colocação em um concurso internacional de solos.

Depois de alguns percalços, a família o apoia integralmente e ele é hoje uma peça importante no empenho de Trevysani de revelar novos talentos e manter acesa a chama do balé clássico em Itaguaí.

MAIS BAILARINOS
Jailson prepara um grande espetáculo para dezembro desse ano, uma lenda que explica a origem de Itaguaí. Há a possibilidade de seguir em turnê com várias apresentações. Para isso, precisa de mais meninos que se interessem por balé.

A exemplo do que aconteceu com Arthur, Matheus e Natã, as portas do Studio de Dança estão abertas para novos talentos. Os meninos recebem bolsas de estudo para cursar balé, jazz e alongamento. As audições são sempre às segundas e quartas, das 15h às 18h, na rua Amélia Louzada, 120 – Centro. O telefone é 2688-4811.

Via: O Dia

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